Esta é,certamente, uma história verídica, cujos fatos andaram quase todos ocultos. Compunham o mais sinuoso dos quebra-cabeças e sua lista de personagens nos remete à nossas próprias vidas.
O ano é 1979. Minha irmã espera a primeira filha e compartilhamos momentos de expectativa em toda família. Por outro lado, minha tia caçula também aguarda a chegada de uma menina após tres filhos homens. Ela vive com meus avós numa pequena casa no mesmo terreno onde mora seu irmão, a mulher e os filhos. São, portanto, duas vertentes, duas tias, ações e pensamentos distintos,mas entrelaçados por um destino inimaginável. É como o vento que remove as areias e mais tarde as trás de volta ou como a tempestade que arrasta os telhados, derruba muros e paredes que se pensava sólidos. Fica-se a lamentar os tijolos caídos,partidos,algo inexplicável e devastador. A arte,definitivamente, não imita a vida,pelo menos não no caso dos tijolos.
Dificuldades existem e são passíveis de gerar soluções cegas e de finais imprevisíveis. Se há os desatentos e inexperientes,há também os que acreditam em suas idéias e as promovem sem esperar oposição. A tia, que era cunhada, convenceu,embasada na realidade absoluta, a entregar a menina que viria para adoção e já tinha quem se propusesse a cuidar da pequena com esmero,carinho e tudo se propunha também a fazer para seu fututo promissor,zelando por sua vida e integridade. Minha tia, mãe de tres e aguardando a tão sonhada menina, concordou. Ambiguidades que não saberia explicar sem passar por um coração aflito, entrelaçado de dor pela escolha e suas consequências, além de ser necessário explicar as verdadeiras e improváveis razões. E assim, tão logo nasceu a bela menina,que chamarei aqui "Laura", a tia que era cunhada, levou-a para os pais adotivos,antes mesmo que experimentasse dos seios de sua mãe, o gosto quente e diferenciado do alimento vital.
Minha irmã, dias antes, dera à luz uma igualmente linda criança, uma menininha que ajudei a cuidar desde seu primeiro dia no mundo e pela qual nutro o mais belo dos sentimentos e imenso carinho. Minha tia que doara a filha, visitou-nos e segurou entre lágrimas a minha pequena sobrinha. Sentí-lhe a dor dilacerante, observei suas lágrimas e enxerguei seu coração amargurado. Ela, apezar de ter tido uma outra menina anos mais tarde,jamais esqueceu-se de "Laura" e permeava um inferno de saudade e angústia, mesmo a outra lhe garantindo estar a criança muito bem.
O ano agora é 2009.
Minhas tias envelheceram e assim como a minha mãe, alguns já haviam partido desta vida. Nunca cheguei a ver a minha prima que fora adotada,mas tinha na lembrança frgmentos desta história,sabia de alguns personagens e corroía-me a vontade de decifrar o enigma. Mas o tempo passou e eu não tivera chance de esclarecer. Estava de volta à cidade para uma visita à família e à minha tia,que era cunhada, pois ela estava gravemente doente e eu gostava muito dela para admitir a idéia de não fazer-lhe uma visita em vida. A mãe de Laura também está muito doente, disseram ser terminal e,juntando tudo, precisava vê-las . Alguns dias depois e a primeira veio a falecer. Silêncio em alguns, lágrimas, muitas delas. Corrí em sua casa, ví meu tio que é irmão de minha mãe, seus filhos,netos e numa conversa, descobrí que Laura também perdera os pais adotivos e manifestara desejo de conhecer a minha outra tia,sua mãe biológica. No entanto, ardia-me a curiosidade de eu mesma conhecê-la e algo em mim esfacelava a razão. Outra hora explico.
No velório da tia, uma outra,minha madrinha, veio apresentar-me uma jovem. Disse-lhe o nome e sentí as pernas dobrarem,o corpo queimar. Era a minha prima, a Laura. Justo no dia do enterro daquela que lhe tirara dos braços da mãe,alegando realismos de causa, estava alí, junto a todos os demais tios, primos,toda família. Minha outra tia, abatida e cansada, repousava sob uma cadeira. Perguntei à minha madrinha por que não as apresentávamos naquele instante e ela me respondeu estar aguardando a oportunidade. "Oportunidade, respondí, se cria". "Vai ser agora".
Enquanto eu levava a tia pra fora, sob um ar fresco e mais leve, minha madrinha levava igualmente a Laura até nós. E como mágica que nos faz explodir em emoção, todos choramos copiosamente ao mostrarmos uma para outra,mãe e filha, causando-lhes enorme esforço para não desfalecer. Jamais,em t oda minha vida experimentei tantas emoções diversas num só dia,num só local. Chorava a morte de uma tia, a lembrança de minha mãe, o reencontro de minha prima com a minha tia. Reví meus conceitos, minhas prioridades e deixei todos os meus problemas do lado de fora. Havia algo de especial e surrealista naquele instante,não seria egoísta. Todos nós estávamos numa profusão de lágrimas e sentimentos. Impossível narrar mais alguma coisa. De certa forma, todos, a família, devíamos algo para as duas,não sei bem por que razão. Ou ausência dela,não sei. Minha sobrinha era a que mais chorava, presumí o que lhe ocorria naquele instante. Ela tinha a mesma idade,fora embalada pela mãe da outra que jamais provara o sabor tênue e indissipável de seu carinho. Ela sabia o significado de tudo que acontecia. Quase trinta anos separara aquele instante e em sua mente, um dilúvio de comoção a afugentava do presente, do lógico.
E eu conseguí falar mesmo embargada e ineficaz nas palavras, que o tempo ajeitava tudo. Recolocava cada tijolinho em seu devido lugar. Nada ficaria sem resposta nem preso às algemas do passado. Felizes os que conseguiam compreender e perdoar. Notórios os que ainda assim, em meio a tristeza do desenlace carnal de alguém querido, tivesse forças para um afago, um doce carinho, uma terna palavra de amor e compaixão.
Experimentei reações opostas, sentimentos totalmente ambíguos e chorei.
Chorei pela tia que partia.
Chorei pela tia que reencontrara sua menina amada.
Chorei por Laura.
Chorei por minha mãe, que certamente previra este momento e dele participara.
Chorei pela possibilidade que a vida oferece e tantas vezes desperdiçamos.
Chorei...mas também pedí perdão e sentí a leveza de ser perdoada.
Os tijolinhos estão em seu lugar, a construção da vida volta a ser admirada, contemplada e abriga corações em flor!!!
O meu profundo agradecimento à Deus pelas lições !
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